top of page

Foto: Pixabay

Ao lado da Prefeitura Universitária da UFRJ há um prédio sem identificação. Quem se aproxima de suas portas de vidro é logo recepcionado por uma segurança, que não hesita em deixar seu posto por alguns minutos para guiar os recém-chegados pelos largos corredores daquele prédio sem nome. É no fim de um deles que se encontra um aconchegante escritório, com duas confortáveis poltronas, vermelhas como a fachada. Próxima a elas, atrás de uma mesa tomada por papéis, Marisa Chaves, coordenadora do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, aguarda o início desta entrevista.

 

A assistente social atende mulheres em situação de violência há quase 30 anos. Hoje, coordena no CRM uma equipe de 21 pessoas, incluindo quatro assistentes sociais, um psicólogo e quatro residentes do Programa de Atenção Multiprofissional à Saúde Integral da Mulher. Todos os profissionais e recursos do centro são custeados  pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ, uma pequena unidade acadêmica, de recursos escassos – razão pela qual o prédio ainda não ganhou uma placa.

Apesar da enorme quantidade de casos de violência doméstica no estado do Rio, o movimento ali ainda é fraco. O centro funciona de segunda a sexta das 9h às 16h, mas, desde sua inauguração em março de 2016, só foram feitos cerca de 40 atendimentos. “Como o CRM fica dentro da universidade, que é um local muito acadêmico, as mulheres ainda não se deram conta de que esse é um espaço delas”, explica Marisa. Uma forma de tentar atraí-las tem sido a realização de atividades lúdicas de prevenção e conscientização, como a exibição de filmes e a leitura de textos seguidas de debates sobre os direitos das mulheres. “Também temos as oficinas de dança às quartas-feiras, feitas em parceria com os estudantes de Dança da UFRJ, além de seminários e rodas de conversa”, completa a coordenadora. 

 

Outra estratégia é o oferecimento de palestras nas empresas do entorno e a participação em reuniões dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e dos Centros de Referência Especializados de Assistência

Além da assistência às sobreviventes, o Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida está implantando um atendimento para as crianças que as acompanham: o Espaço Brincar. O objetivo da empreitada é poupar os pequenos das narrativas de violência e dar a eles uma chance de se expressarem através de desenhos. Marisa diz que, muitas das vezes, a preocupação com os filhos é justamente o que leva a mulher a procurar ajuda. “Quando a gente pergunta: ‘Como você está?’, isso quebra. Ela fala: ‘Como, eu? Eu vim aqui falar do meu filho’. Respondemos: ‘Não, nós estamos perguntando por você. Como é que você está?’”, conta a coordenadora. “Nesse momento em que ela se vê como sujeito do atendimento, normalmente ela se emociona muito.”

Muitas mulheres têm dificuldade para enxergar que sofrem violência e tendem a naturalizar o abuso e justificá-lo. “Elas alegam que o homem agrediu ou foi mais estúpido, porque estava nervoso, porque o patrão cortou o salário dele, porque ele se aborreceu na rua”, exemplifica a assistente social. Além disso, admitir que uma relação tão importante para elas acabou pode ser muito duro. “Elas também têm muito medo de serem vistas como culpadas ou fracassadas, como se elas não tivessem a capacidade de cuidar das crianças, da casa ou do marido”, acrescenta Marisa.

 

A rede de proteção primária da mulher, formada por familiares, amigos e outras pessoas próximas, é essencial para que ela sinta que não está sozinha. Porém, é comum que quem está fora do relacionamento enxergue o agressor como um “homem legal”, incapaz de cometer os abusos que a mulher diz sofrer. “O fato de ele ser trabalhador, um bom cumpridor de deveres, cooperativo ou solidário com os amigos na rua não significa que não seja capaz de praticar uma violência contra sua parceira”, alerta. 

 

Nos casos em que as pessoas próximas percebem que há algo de errado acontecendo, também é comum que se afastem, por não quererem se envolver. Então, a mulher fica sem saber a quem pedir ajuda. “É no momento que os familiares mais deveriam se aproximar, que eles se afastam”, lamenta a coordenadora. “Também tem parentes que já ajudaram, mas a mulher sempre minimizou a situação e deu mais uma chance ao parceiro. Então a família pensa: ‘Vou ajudar de novo e me expor àquele problema se ela não sabe o que quer?’” 

 

O isolamento leva muitas sobreviventes a tentarem sair sozinhas da relação, mas a falta de apoio nesse momento tão delicado pode ter um final trágico. “Eu acompanhei 14 casos de feminicídio e, quando tive contato com as famílias, elas falaram, de forma assombrosa, que não sabiam que isso estava acontecendo.” Por isso, quando os profissionais do CRM percebem que as sobreviventes não compartilharam sua situação com os familiares, pedem permissão para envolvê-los. “É muito comum a gente atender uma mulher que não tem familiares no Rio de Janeiro e, com autorização dela, fazermos o contato com esses parentes. Eles chegam rapidamente para acolhê-la e, nisso, ela se vê fortalecida, porque ela não está sozinha.”

​

Ao longo de sua carreira, Marisa constatou que a reação dos familiares é, em geral, de solidariedade. Porém, nem sempre o contato gera frutos. “Já atendi alguns casos em que o familiar não quis mesmo se envolver”, afirma a coordenadora. Ela lembra um atendimento feito a uma mulher que foi levada ao Hospital Geral de Bonsucesso após passar mal em um ônibus de viagem. “Ela teve um problema gástrico, que certamente foi emocional. Vomitou muito. E, ao escutarem essa mulher, perceberam que ela tinha registrado três ocorrências em Santa Catarina e estava fugindo do marido”, narra a assistente social. A moça deixou dois filhos e veio sozinha para procurar um irmão, mas, ao ser contatado pelo Serviço Social, o rapaz se recusou a recebê-la. Conversando com ele, a equipe do CRM entendeu que a irmã também havia se recusado a recebê-lo em sua casa no Sul, por ele ser homossexual. “Ela tem um marido machista, agressor e homofóbico, que tratou esse cunhado mal. O irmão certamente não sabia que ela sofria violência e achou que ela pactuou com esse abuso que ele sofreu”, explica. “Olha só a situação. Ele se negou, mas antes de julgar, temos que entender que já havia uma história pregressa de violência.”

 

A fragilidade das políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência contra a mulher é outra barreira enfrentada pelas sobreviventes. Sem perspectivas de moradia, a moça de Santa Catarina acabou sendo levada a uma casa-abrigo, espaço sigiloso que recebe mulheres em situação de risco por um período determinado. De acordo com as Diretrizes nacionais para o abrigamento de mulheres em situação de risco e violência, cabe às sobreviventes, depois de saírem desses espaços, reunirem as “condições necessárias para retomar o curso de suas vidas”. Mas, afastadas por tanto tempo de amigos, de parentes e da vida profissional, essa tarefa não é nada fácil.

 

“Falta uma política de qualificação para o mercado de trabalho e um auxílio aluguel emergencial”, avalia Marisa. Ela acredita que garantir a autonomia das mulheres com políticas assistenciais provisórias é essencial para a superação da violência. “É preciso acolher a mulher nesse momento de fragilidade, entendendo que ela não é frágil. É a situação que a fragiliza”, conclui Marisa Chaves.

Social (Creas). “As unidades que nos conhecem começam a referenciar as mulheres para cá”, afirma Marisa. Atualmente, a maior parte delas chega com encaminhamento, mas há quem apareça espontaneamente, após tomar conhecimento do serviço em panfletos, por exemplo.

 

A coordenadora esclarece que não há nenhum critério para que a mulher seja inserida no programa de atendimento. Basta que ela entre no serviço para ser atendida pela assistente social que estiver disponível no momento, a qual se tornará responsável por seu caso. Em média, esse primeiro encontro dura cerca de 50 minutos e, caso a profissional julgue necessário, o setor de psicologia poderá ser acionado para avaliar se a mulher precisa de terapia. Embora o programa não conte com um setor jurídico, as profissionais são capacitadas para dar orientações gerais sobre a Lei Maria da Penha. Além disso, o centro tem uma parceria com o Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio, para onde são encaminhadas as mulheres que desejam abrir um processo judicial. 

 

A decisão de fazer ou não uma denúncia cabe unicamente à mulher e não interfere no atendimento. Marisa ressalta que o profissional que trabalha com a violência doméstica precisa aceitar o tempo da sobrevivente, se despindo de preconceitos e da ideia de que seria possível obrigá-la a seguir um “passo a passo” da superação do abuso. Ela explica que muitas mulheres são tuteladas por seus pais, avôs, irmãos ou tios e, ao casarem, passam a ser tuteladas pelo marido. “Se o profissional não tiver muito bem treinado e acompanhado, acaba assumindo esse papel. E temos certeza de que isso não colabora”, afirma Marisa. “A mulher se sente mais uma vez como um objeto cuja ação se destina a ela, mas que não depende dela.”

 

Em vez disso, os profissionais devem ajudá-la a refletir sobre sua situação, para que percebam que o abuso é fruto de uma cultura “construída historicamente e socialmente reproduzida”, que elas têm direito a uma vida livre de violência e que há outras mulheres que passam por situações parecidas. “A sobrevivente de violência pode ser uma pessoa sem renda, ou que viva outras privações, como também pode ser uma pós-graduada, uma mulher que tem escolaridade, renda, autonomia econômica e empregabilidade”, esclarece. Segundo a assistente social, o abuso pode fazer mesmo a mulher mais privilegiada sofrer uma redução drástica de sua autoestima, o que dificulta a superação da violência.

​

​

Casos enquadrados na Lei Maria da Penha no estado do Rio em 2015

Marisa Chaves, assistente social e coordenadora do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida

Foto: acervo pessoal

Fonte: Dossiê Mulher 2016/Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro

O fato de o homem ser trabalhador e solidário com os amigos não significa que não seja violento com a parceira 

​"

​"

Próxima Reportagem

Marisa Chaves, coordenadora do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, fala do funcionamento do CRM e do perigo de tentar sair de uma relação violenta sem ajuda

ENTREVISTA

Âncora 1
bottom of page