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Foto: Globo

A alegria de seu parceiro era vê-la triste. Durante 12 anos de casamento, a técnica em Segurança do Trabalho Áurea Manhães, de 38 anos, ouviu do marido o que vestir, o que comer e quando sorrir. Ela devia estar sempre disponível para servi-lo: a comida tinha que ser igual a que a mãe dele costumava fazer e seu guarda-roupa, que crescia a cada semana, precisava estar sempre impecável. Ele mal parava em casa, mas queria que ela ficasse entre quatro paredes e não aceitava que tivesse amigos. Nas raras ocasiões em que saíam juntos, tudo era motivo para brigas, ofensas e humilhações.

 

Nem sempre foi assim. Por dez anos, Áurea namorou um rapaz carinhoso, que nunca se mostrou agressivo. Mas bastou colocar uma aliança em seu dedo para que ele se revelasse um homem violento. Em pouco tempo, os abusos verbais e psicológicos se tornaram físicos. “Ele passou a querer me agredir, principalmente quando se sentia frustrado por alguma coisa, alguma opinião que eu não concordava”, conta Áurea. Ela lembra que, além de socá-la, ele chegou a jogar em seu rosto um tabuleiro fervendo com um empadão recém-saído do forno. “Eu tomei um susto, falei: ‘Olha o que você fez!’. Ele falou: ‘Ah, você me irrita!’”.

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A Organização Mundial da Saúde considera a violência doméstica um problema de saúde pública e a classificou em 2013 como uma “epidemia global”. No mesmo ano, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos revelou que 81% das mulheres que sofreram algum tipo de violência doméstica têm problemas crônicos de saúde. As chances de elas desenvolverem este tipo de enfermidades é até duas vezes maior que a de mulheres que nunca foram abusadas.

 

A extensão do problema fica clara diante das altas taxas desse crime no Brasil. Em 2016, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma a cada três brasileiras com 16 anos ou mais sofreu violência psicológica, física, sexual ou verbal e estima-se que 503 mulheres tenham sido agredidas a cada hora no país. Mais da metade dos casos caracterizavam-se como violência doméstica. Nos casos de estupro, segundo o Ipea, 70% são cometidos por parceiros, amigos, familiares e outros conhecidos.

As sobreviventes de violência sexual são as mais vulneráveis ao desenvolvimento de dores e doenças crônicas: 88% delas têm algum desses problemas. Quando o agressor é um marido ou namorado, pode ser difícil para a mulher reconhecer que sofreu essa violência. Em nenhum momento de seu relato Áurea usou a palavra “estupro”. Ela disse, porém, que o marido exigia que ela mantivesse relações com ele mesmo quando ela não desejava e que ficava violento quando ela se recusava. A descrição se encaixa no conceito de estupro.

 

Como a maior parte das mulheres em situação de violência, Áurea sofria em silêncio. Isolada, não demorou para que sentisse no corpo aquilo que sua mente ainda não conseguia processar. Ela passou a ter dores fortíssimas no ventre, que só seriam diagnosticadas depois de dez anos de visitas a unidades de emergência e de internações hospitalares. Eram pólipos no útero, que precisavam ser removidos em uma cirurgia.

 

“Todas as vezes que eu ficava muito nervosa ou me aborrecia, as dores se intensificavam”, explica Áurea. Para seu desespero, o marido resolveu ir com ela até o hospital no dia do procedimento. Ela foi liberada logo depois da cirurgia com um aviso: não podia fazer esforço. Segundo ela, tão logo o anestesista virou as costas, o marido ordenou: “Você vai descer andando e vai pegar o ônibus, porque eu não vou gastar um real contigo.” O hospital ficava no alto de um morro. Durante a descida, o sangue jorrava por suas pernas.

 

A violência doméstica e sexual está relacionada tanto a problemas de saúde física quanto mental. De

acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), ela está ligada ao aumento da incidência de dores crônicas, queixas ginecológicas, sintomas gastrointestinais, problemas no sistema nervoso, depressão, transtorno do estresse pós-traumático e abuso de substâncias. Além disso, as mulheres em situação de violência vão com mais frequência a serviços de saúde, passam mais tempo em hospitais e têm mais internações. Aimee Gallagher, ex-coordenadora de programas científicos na Society for Women’s Health Research, instituição norte-americana que reúne especialistas na saúde das mulheres, explica que tanto o abuso físico quanto o psicológico e o sexual podem resultar em problemas de saúde física e mental.

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Dores nos rins, crises de sistema nervoso, ataques de pânico, desmaios e sintomas de síndrome do intestino irritável passaram a fazer parte da rotina de Áurea depois que ela começou a sofrer violência. “Daqui a pouco você vai morrer”, ela disse ter ouvido de um médico. Pouco tempo depois de remover os pólipos uterinos, Áurea descobriu outro problema grave: estava com um nódulo enorme na garganta, que já ameaçava invadir seu tórax. Feita em caráter de emergência, a operação para extração do nódulo resultou na retirada total de sua tireoide e de 

suas amígdalas. Mesmo em uma situação tão difícil, ela conseguiu focar no que considerou uma bênção: dos 12 pacientes que passaram por procedimentos semelhantes naquele dia, ela foi a única cujo nódulo era benigno.

A residente de Enfermagem Camila Sixel, de 25 anos, é mais uma mulher que viu sua saúde, antes estável, se deteriorar depois de passar por um relacionamento abusivo. A jovem casou com seu primeiro namorado. Hoje, ela reconhece que ele já dava sinais de descontrole antes do casamento, mas, na época, ela não o enxergava como uma pessoa violenta. “Eu era de uma igreja e lá tinha que casar rápido”, explica Camila. “Uma vez ele ficou gritando e apertou a minha mão. Na época eu não achei que era nada demais. As coisas só pioraram depois que eu casei.” Ela conta que sempre ganhou mais do que o marido e que ele a pressionava para trocarem de carro. Como ela recebe seu salário do estado e já tinha ficado sem pagamento durante alguns meses, não achava que a decisão era sensata e se recusou a gastar o dinheiro. Então, ele começou a agredi-la e torturá-la.

 

“Comecei a ter herpes nesse relacionamento”, diz Camila. Ela lembra de ter se sentido tão mal depois de uma discussão que chegou a ser internada. Depois de sete meses de casamento, ela conseguiu se separar, mas seu ex continuou a persegui-la por outros seis meses. “Exatamente quando meu primeiro ex me perseguia, eu tinha alguma doença”, constata a moça. “Teve até um mês que eu tive infecção urinária, herpes, candidíase e tive depois infecção urinária de novo.”

 

Além dos sintomas físicos, Camila desenvolveu depressão. “Eu comecei a ficar muito mal. Cheguei a fazer uma tentativa de suicídio”, revela a residente. Ela admite que, por preconceito com doenças mentais, não queria ir a um psiquiatra. Além disso, não queria tomar remédios, porque via pessoas que se medicavam e ficavam diferentes. “Foi isso que aconteceu comigo. Eu comecei a tomar e fiquei completamente passiva”, conta ela. “Muita coisa eu relevava no relacionamento que eu tive, porque eu não ligava para nada.”

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Arlanza Rebello, do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, diz que muitas mulheres em situação de violência usam medicamentos para a depressão, para dormir e para se acalmar, e que é comum que as deprimidas fiquem muito tempo sem ação. Ela destaca que a violência psicológica é um trauma que leva muitas mulheres a ficarem ligadas a remédios e tratamentos. Ann Coker, ginecologista e pesquisadora do Centro de Pesquisas sobre Violência contra a Mulher da Universidade de Kentucky, nos EUA, explica que muitas das sobreviventes que passam tanto por violência física quanto psicológica dizem que o abuso psicológico é mais difícil de suportar. Mas Arlanza afirma que,  até pouco tempo, essa forma de violência era diminuída nos serviços de assistência, em que profissionais questionavam as mulheres onde estavam seus machucados. “Querem comprovação física e não existe isso”, reprova a defensora.

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Alguns meses depois de se separar, Camila começou outro relacionamento e foi morar junto com o rapaz. Quando ela anunciou que estava grávida, ele começou a agir de forma violenta. “Uma vez a gente discutiu, ele deu um soco na porta do armário e ela caiu”, diz a jovem. A família do ex a culpava pelas atitudes dele e dizia que aquilo não era nada demais. “Ninguém entendia que eu tinha sofrido violência física também, que não era só um armário e que quebrar um armário também é uma forma de intimidação”, critica.

Certa vez, seu ex chegou a sentar em cima de sua barriga para imobilizá-la e tentou forçá-la a tomar remédios. “Ele ficou falando que eu estava descontrolada, que eu estava louca, um monte de coisa assim. Eu comecei a chorar e a falar que não ia tomar”, conta. Logo Camila voltou a ter herpes e passou a ter candidíase. Depois que terminou com o namorado, ele começou a ofendê-la e ameaçá-la, dizendo que ela tinha problemas mentais e que ele iria tirar a guarda do bebê quando nascesse. As ameaças intensificaram os enjoos da gravidez. “Conforme ele me ameaçava e fazia as coisas, eu comecei a passar muito mal e vomitar muito. Todo dia eu vomitava.”

 

Maria Cecília Minayo, coordenadora científica do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (Claves), explica que a violência pode se transformar em sintomas físicos quando o corpo começa a expressar um sofrimento psíquico com que a pessoa não consegue lidar. Uma das pesquisadoras que trabalham com esse conceito, chamado de somatização, é a médica Anna Paula Florenzano, que já fez parte do Claves. Ela trabalhava na clínica de dor do Hospital Pedro Ernesto e, ouvindo as queixas das mulheres que atendia, percebia que havia algo ali que não era investigado.

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“Quando eu estava sozinha com elas e arrisquei perguntar se elas tinham histórias de violência, elas foram revelando que sim. Então isso me pareceu muito forte, muito instigante e não era questionado no diagnóstico”, conta Anna Paula. Sua pesquisa de mestrado revelou que 90% das mulheres atendidas no ambulatório que se queixavam de dores crônicas apresentavam um histórico de violência verbal, física ou sexual. No doutorado, a médica continuou a pesquisa, dessa vez no Hospital Clementino Fraga Filho, e encontrou resultados semelhantes.

 

Áurea lembra que a assistente social Bianca Capelli, que a atende na Clínica da Família, disse que o nódulo em sua garganta era “um grito” que há muito tempo esperava para ser soltado. “Como você guardou por muito tempo, isso foi crescendo dentro de você”, ela diz ter ouvido de Bianca. “Você ficava só ouvindo e você não falava. Então isso causou em você as enfermidades.”

são 80% das vítimas desse tipo de crime. “Eu sofri um assédio sexual no trabalho, e eu não estava bem mesmo, estava já muito cansada. Foi aí que eu entrei em depressão”, conta Camila.

 

Janet Rich-Edwards, professora das escolas de Medicina e Saúde Pública da Universidade de Harvard, nos EUA, acredita que as mulheres sentem mais os efeitos da violência, porque os abusos cometidos contra elas costumam representar uma ameaça maior às suas vidas do que o abuso cometido contra os homens. Segundo dados da ONU, 47% dos assassinatos de mulheres no mundo foram cometidos por familiares ou parceiros íntimos – entre os homens, essa taxa se mantém em 6%.

 

Para Jacquelyn Campbell, a violência cometida pelos homens contra as mulheres também costuma gerar mais medo do que o abuso que elas cometem contra eles. Isso estaria relacionado tanto ao fato de eles serem, em geral, maiores e fisicamente mais fortes do que elas, quanto ao próprio tipo de ato violento que costumam cometer. “Os homens têm uma propensão maior a estrangular ou sufocar uma mulher em um relacionamento abusivo do que as mulheres têm a fazerem isso com eles”, exemplifica. Além disso, Campbell afirma que o controle masculino sobre as mulheres gera mais estresse por contar com respaldo social. “As chances de eles terem uma reação total ao estresse diante dessas ações [abusivas] é menor, porque eles sentem menos medo, se sentem menos controlados e a sociedade não está apoiando esses mecanismos de controle”, argumenta.

 

A raça da sobrevivente é outro aspecto relevante. No Brasil, as mulheres negras são a maior parte das vítimas de violência doméstica e sexual e são o grupo submetido às piores condições vida. Além disso, ainda sofrem as consequências do machismo e do racismo. “A gente sabe que o racismo produz humilhação, produz constrangimento, produz um sentimento de inferioridade”, afirma a médica Maria Aparecida Patroclo, que integra a coordenação técnica da ONG Criola. “Tudo isso com certeza vai refletir sobre o domínio psicológico da pessoa.” Jacquelyn Campbell acredita que o estresse gerado tanto pelo racismo estrutural quanto pelas “micro-opressões diárias” pode tornar as mulheres negras em situação de violência mais vulneráveis ao adoecimento.

A maior parte dos casos de violência doméstica e sexual é cometida contra mulheres em relações heterossexuais. É comum que os abusos praticados pelos homens sejam justificados pelo uso de álcool e de outras drogas. Mas a promotora Lucia Iloizio afirma que essa não é a raiz da violência e que é preciso cuidado para não pensar no agressor como uma pessoa doente. “A violência vem de uma tradição histórica e de uma carga cultural que a gente tem dificuldade de enxergar”, explica.

 

Para a médica Ana Flávia D’Oliveira, a violência se baseia na crença dos homens de que as mulheres são sua posse e que podem controlá-las. Dados do Instituto Avon apontam que a maior parte dos homens tem uma visão machista do papel feminino e acredita ter o direito de controlar o comportamento das parceiras. 89% consideram inaceitável que uma mulher não mantenha a casa em ordem; 85% que ela fique bêbada; e 46% que ela use roupas justas ou decotadas. Mais da metade dos homens de todas as classes sociais já cometeu violência contra a atual ou ex-companheira, e o ciúme e a possessividade foram citados como principais motivos.

 

Nilcea Freire, ex-ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres, define a violência como “uma das manifestações mais perversas da desigualdade de poder entre homens e mulheres”. E Leila Linhares, coordenadora da ONG Cepia, acredita que o aumento da violência está ligado à dificuldade dos homens de aceitarem a liberdade feminina, o que tem origem em uma mentalidade machista e patriarcal. “Se a mulher está na rua, é porque ela está querendo ser atacada sexualmente”, exemplifica.

 

Como tantas sobreviventes, Camila Sixel foi acusada de ter provocado a violência que sofreu. “As pessoas aceitam mais quando o homem grita, quando levanta a voz e age de forma mais agressiva, porque ‘ele é homem, é da natureza dele’”, argumenta a residente de Enfermagem. “A gente é mulher, então tem que ser passiva, tem que ser submissa. Isso tudo influencia nos relacionamentos. Passei por isso na pele.”

 

Nilcea defende que o trabalho de enfrentamento precisa ser feito na esfera mais ampla da desigualdade de gênero, base da violência contra a mulher. “Você pode construir quantas casas abrigo você quiser. Se você não combater, não enfrentar as raízes dessa desigualdade, não adianta”, avisa a ex-ministra.

 

“Quando se fala de violência de gênero, se fala de estruturação social, do pano de fundo dessa violência serem esses papéis sociais. Isso não é ideologia, é conceito”, explica a Dra. Lucia. Segundo Claudia Moraes, analista criminal do Instituto de Segurança Pública, é preciso mudar a forma como meninos e meninas são educados para que se possa avançar na diminuição da violência de gênero. Para ela, a sociedade precisa “deixar de ser hipócrita”.

 

“A criança é pequena para estudar a Lei Maria da Penha, mas ela não é pequena para ver o pai batendo na mãe dentro de casa”, critica.

O Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher, recebeu 140.350 denúncias de violência em 2016. No ano anterior, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que foram registrados 45.460 estupros e que 89% das vítimas eram mulheres. Assustadores, os números representam uma pequena fração dos casos ocorridos no Brasil. Estima-se que só 33% das mulheres denunciaram a última agressão que sofreram e a estimativa mais otimista indica que só 35% dos estupros são notificados.

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David Lisak, criminalista especializado em violência sexual, afirma que essas formas de violência são “profundamente pessoais” e que uma das reações naturais das sobreviventes é evitar expor a agressão. O julgamento da sociedade, que costuma culpar as vítimas pelo abuso, reforça o silêncio das mulheres. No Brasil, um terço da população acredita que a mulher que usa roupas “provocativas” não pode reclamar se for estuprada. Segundo Lisak, esse tipo de pensamento pode fazer até quem deseja denunciar mudar de ideia e se calar.

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“A nossa sociedade é machista, ela o tempo todo culpabiliza a mulher”, reforça Claudia Moraes, do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro. Ela diz que às vezes a mulher absorve essa culpa e se questiona se provocou o abuso. “Isso não deveria passar em nenhum momento na cabeça de uma pessoa que sofreu essa violência.”

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A dificuldade para enxergar abusos diferentes do físico como violência é outra barreira. Arlanza Rebello, defensora pública do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher, afirma que as mulheres só procuram o órgão depois de serem agredidas. O medo de retaliações também é uma questão. A juíza titular do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar do Rio de Janeiro, Adriana Ramos de Mello, conta que muitos homens ameaçam tirar os filhos das mulheres ou mesmo matá-las caso denunciem. Não são ameaças vazias. Marisa Chaves, coordenadora do Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida, já acompanhou 14 mulheres que acabaram sendo assassinadas pelos parceiros, todas no momento em que tentavam sair da relação.

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O medo impediu Camila Sixel de denunciar seu ex-marido. A residente conta que ele era de outro estado e, um dia, ela descobriu que o ex era acusado de homicídio, tortura e tráfico de drogas em sua cidade de origem. “Descobri isso no Google e fiquei com medo de denunciar.”

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Áurea Manhães também preferiu não denunciar o marido, que começou a ameaçá-la pouco antes do divórcio. Como ele havia concordado em assinar os papéis da separação, ela e a irmã concluíram que ir à polícia só iria causar mais transtornos. “Eu pensei em denunciar, mas ao mesmo tempo eu falei: ‘Quer saber? Eu só quero me livrar dele’”, explica.

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Quando a mulher chega à delegacia, frequentemente se depara com a violência institucional. Policiais procuram justificativas para o estupro no comportamento da sobrevivente e se negam a registrar casos de violência doméstica. Em 2009, uma a cada cinco mulheres brancas deixou de fazer a denúncia por esse motivo, segundo o Dossiê Mulheres Negras. Para as mulheres negras, que sofrem com o racismo institucional, a proporção foi de uma a cada quatro. Adriana ressalta a importância de se capacitar os profissionais para que façam um atendimento livre de julgamentos. Diante dos estereótipos de gênero nos serviços, Claudia conclui: "As instituições policias são uma boa mostra da sociedade brasileira". 

Ana Flávia ressalta que o cérebro é fisicamente moldado pelas experiências a que as pessoas são expostas. Imagens de ressonância magnética mostram, por exemplo, que o cérebro de crianças maltratadas é diferente do de crianças com boas condições de vida, de acordo com a médica. “O nosso corpo é plástico, ele é afetado o tempo todo pelo ambiente, pelo que nos circunda e pelas relações que a gente tem”, afirma.

 

A neuroplasticidade pode explicar por que o abuso tem um efeito maior sobre a saúde quando é cometido na infância, época de muita atividade cerebral. Áurea conta que seu histórico de violência psicológica começou quando era criança. Seu pai dizia a ela e à irmã que não iria investir nada nelas, porque elas nunca dariam retorno. Segundo Campbell, alguns estudos trabalham com a hipótese de que os efeitos da violência sobre uma pessoa adulta que já havia sido abusada na infância são ainda mais severos.

 

A pesquisadora acredita que uma mulher que sofre violência pela primeira vez na adolescência também pode estar mais vulnerável ao adoecimento do que uma mulher adulta. Isso porque essa é outra fase de desenvolvimento cerebral intenso. As taxas de violência doméstica entre mulheres jovens no Brasil tornam a informação preocupante. Entre as brasileiras de 16 a 24 anos, 66% já sofreram alguma forma de violência em um relacionamento. Além disso, 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes e quase metade das jovens das classes C, D e E já foram estupradas por um parceiro. Por outro lado, Campbell sublinha que é possível que ações de prevenção do adoecimento sejam mais eficazes em adolescentes do que em adultos, justamente pela alta taxa de atividade cerebral.

 

A propensão genética a certas doenças, os fatores de risco de cada pessoa e a severidade do abuso são outros aspectos que influenciam o desenvolvimento de problemas crônicos em sobreviventes de violência doméstica. Campbell enfatiza, porém, que é muito difícil medir a gravidade de casos de violência. “Como você quantifica os efeitos de um estupro horrível cometido por um estranho na rua em comparação com, digamos, o sofrimento de uma adolescente que é abusada pelo pai, talvez não diariamente, mas que precisa conviver com ele todos os dias?”, questiona a pesquisadora.

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A violência doméstica impacta tanto a saúde das mulheres quanto dos homens sobreviventes, mas elas estão mais vulneráveis ao adoecimento do que eles. Segundo o CDC, 80,8% das mulheres que sofreram violência física, estupro ou perseguição por um parceiro relataram impactos resultantes do abuso. Entre os homens, a taxa foi de 34,7%. Para Maria Cecília Minayo, é importante lembrar que os homens verbalizam menos suas queixas do que as mulheres. Então, é mais provável que eles digam que está tudo bem, mesmo quando não está.

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“O contexto de que o homem não gosta de falar dele mesmo, não gosta de mostrar fraqueza, isso faz parte da cultura patriarcalista, machista, que a mulher tem mais facilidade de falar”, explica Cecília. Mas ela sublinha que a vida da mulher realmente gera mais estresse que a do homem, o que pode resultar em mais sintomas. A dupla jornada de trabalho é uma grande fonte de estresse, por exemplo. As mulheres trabalham em média 5,4 anos a mais do que os homens em 30 anos de vida laboral. Porém, recebem menos do que eles em todos os cargos e precisam lidar com o assédio sexual no ambiente de trabalho, onde 

Toda relação abusiva responde a um ciclo de violência composto por três fases: a “lua-de-mel”, o aumento da tensão e a explosão. Ao contrário do que se poderia imaginar, um homem abusivo é um homem como qualquer outro. Ele pode ser engraçado, interessante e possuir várias qualidades, assim como viver momentos muito agradáveis com a parceira de vez em quando.

 

A fase da lua-de-mel é justamente esse momento “normal” e feliz da vida do casal. Mas, como o agressor é na verdade autoritário e controlador, vai mostrar em algum momento sua face abusiva. Então, começa a tensão, quando ele passa a se mostrar nervoso e agressivo e a parceira não consegue acalmá-lo. Já a explosão é quando a violência ocorre de fato. Depois do episódio violento, é comum que o agressor se mostre arrependido e faça juras de amor à companheira, prometendo mudar e nunca mais agir daquela forma. Com o perdão, o ciclo recomeça.

 

Para quem está de fora, pode parecer fácil entender que o homem não vai mudar. Mas, para a mulher em situação de violência, não é tão simples. “Todo mundo enxergava as maldades que ele fazia comigo. Eu era a única pessoa que não conseguia”, conta Áurea. Camila também lembra que seu ex-marido era grosso com ela durante seu namoro, mas que pedia desculpas e ficava “super carinhoso” logo depois. Ela diz que não conhecia o ciclo da violência na época e, por isso, acreditava no ex.

 

Mesmo quem sabe da existência desse ciclo pode ter dificuldades para reconhecê-lo quando está nele. Isso acontece porque a violência tende a começar de forma sutil e se tornar mais grave com o tempo. E, conforme o trauma inicial de cada ato abusivo diminui, surge um elo muito forte entre o agressor e a sobrevivente, chamado na psicologia de vínculo traumático. Ele altera a memória da pessoa abusada, distorcendo sua percepção da probabilidade de a violência ocorrer de novo. Assim, além das barreiras socioeconômicas, existe um fator psicológico que dificulta a quebra deste ciclo e faz com que a mulher permaneça na relação violenta.

Áurea também tem seu cotidiano profundamente afetado pelos problemas de saúde que desenvolveu. Todos os dias, toma um remédio que substitui os hormônios que deveriam ser produzidos por sua tireoide. Ela conta ainda que, depois de ter ficado 15 dias sem evacuar, os médicos pediram exames que revelaram que ela estava com pólipos e divertículos nos intestinos que poderiam sangrar a qualquer momento. Por isso, Áurea foi instruída a seguir uma dieta rigorosa que provavelmente a acompanhará por toda a vida. Ela só pode comer alimentos batidos no liquidificador e arroz e feijão estão fora de cogitação. “Além de tudo eu tenho que ser rica, agora”, brinca Áurea. “Como que pobre fica sem comer arroz e feijão?”

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Hoje, Camila procura não pensar nas coisas ruins que aconteceram. “O importante é que eu saí disso e que se acontecer de novo, também, eu vou sair de novo. Eu não vou deixar ninguém fazer nada comigo”, assegura a jovem, determinada. Depois de passar pelo primeiro relacionamento abusivo, ela entrou em um grupo de apoio virtual para mulheres em situação de violência, em que conheceu seus direitos. “Eu tive apoio das mulheres que passaram pelo mesmo. Isso foi muito importante para mim.” Ela denunciou o segundo ex e afirma que correr atrás de seus direitos a ajudou muito, ainda que ele tenha aparecido na delegacia tentando desqualificar sua queixa pelo fato de ela tomar remédios para depressão. “Ter feito tudo que eu podia, ter lutado, isso já me trouxe um alívio”, expressa Camila. “Eu comecei a me sentir mais dona da minha vida, a sair dessa posição de vítima e me tornar alguém que poderia mudar a história de vez.”

 

Agora, o plano é voltar para a residência para cumprir a carga horária restante e terminar seu trabalho de conclusão de curso. “Eu via que no hospital as pessoas tinham bastante preconceito com gestantes que tinham várias doenças. E eu escutava assim da equipe: ‘Nossa, essa mulher é cheia de coisa, por que que ela resolveu ter filho?’. Aí eu achei interessante abordar isso para tirar esse preconceito das pessoas”, explica Camila. Com o diploma em mãos, a jovem pretende procurar um novo emprego e se dedicar ao bebê que está por vir.

 

Áurea também está começando um novo capítulo em sua vida. Ela se separou do marido há quase um ano, quando ele

a humilhou na frente de sua mãe, que acabou tendo um AVC. “Ele ficou deitado na cama dizendo que era uma palhaçada tudo aquilo que estava acontecendo”, diz Áurea. “Foi o momento da minha libertação, que eu falei: ‘Já que é palhaçada, então você vai viver num circo na casa da tua mãe, que lá tem vários personagens. Mas eu não quero mais nada com você. A partir de hoje, nosso casamento acabou’”.

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Hoje, Áurea pode abrir seus braços e ditar seus próprios caminhos. Eu sou livre”, declara, abrindo um sorriso. Ela

reconhece que superar 12 anos de violência é um processo longo, que está apenas no começo. “Você está livre, mas parece que você ainda vive aquela situação. Todos os dias eu acordo com a voz dele nitidamente na minha cabeça”, desabafa. Mas, mesmo com as dificuldades, seu tom é de animação e esperança. Em uma mesma semana, Áurea recebeu seu registro de divórcio e foi contratada para um novo emprego.

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Ela conta que também foi convidada por Bianca, a assistente social da Clínica da Família, para ajudá-la em um projeto que reúne mulheres em situação de violência. “Parece que uma coisa vai saindo aos poucos de dentro de mim quando eu começo a falar”, diz Áurea, explicando por que quer participar do grupo. Ela também quer ajudar outras mulheres a superarem o abuso. “Quero dizer a elas: você consegue. Você tem potencial, menina. Assim como aconteceu comigo, vai acontecer mais ainda com você, ou melhor ainda.’” Se seus planos se concretizarem, em alguns anos ela poderá participar desses grupos em uma posição diferente: Áurea sonha em cursar Serviço Social para ajudar crianças e mulheres em situação de violência.

 

O que ela diria caso ouvisse uma mulher contando a mesma história que ela compartilhou? Em primeiro lugar, parabéns. “É como se eu visse que ela olhasse para dentro dela e falasse assim: ‘Eu fui até o fundo do poço. Quase tamparam a minha cova, mas ainda tinha uma brecha. E foi nessa brecha que eu consegui me levantar’”, afirma Áurea, emocionada. “Eu cairia em lágrimas, mas eu iria dar um grande abraço nessa mulher, porque é muito guerreira. Muito guerreira.” Sim, ela é.

Ana Flávia D’Oliveira, que coordenou no Brasil um estudo internacional da OMS sobre a relação entre saúde e violência doméstica, destaca que a relação entre o corpo, a mente e a vida não é completamente entendida pela medicina. “Quando você fala de somatização, geralmente o pessoal da saúde mental está falando de sintomas que não têm base biológica”, explica a médica. “Eu acho que a saúde e a doença são determinadas pela situação de vida, mas há uma base biológica, também.”

 

As mulheres em situação de violência são submetidas a um estresse crônico que surte efeitos nocivos sobre o sistema imunológico. Pesquisas mostram que o estresse acelera o envelhecimento das células e pode desregular o funcionamento de vários sistemas do corpo. Jacquelyn Campbell, professora do curso de Enfermagem da Universidade Johns Hopkins, referência na área de saúde nos Estados Unidos, afirma que o estresse provocado pela violência tem efeitos quase que imediatos sobre a saúde das mulheres.

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“O sistema imunológico baixa totalmente, aí fico tendo várias infecções recorrentes. Isso foi tudo consequência do estresse que eu passei”, entende Camila. “O medo que a gente sente, o julgamento, o estresse. Também a questão social, de as pessoas acharem que a gente, de certa forma, é culpada pelas coisas. Isso tudo vai adoecendo a gente.”

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A hipótese do estresse dá conta dos maiores impactos da violência sexual sobre a saúde. David Lisak, criminalista norte-americano especializado nesse tipo de abuso, afirma que quem passa por um estupro tem mais chances de desenvolver transtorno do estresse pós-traumático do que um veterano de guerra. “Quando você tem TEPT por muito tempo, é um estresse contínuo fortíssimo agindo no seu corpo”, informa Lisak. “Alguns desses mecanismos são muito bem entendidos atualmente e levam a doenças crônicas e a qualquer problema desde resfriados, gripes, coisas desse tipo, até problemas mais sérios, porque o sistema imunológico é danificado.”

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O medo que a gente sente, o julgamento, o estresse, isso tudo adoece a gente

Camila Sixel, residente de Enfermagem

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81% das mulheres em situação de violência desenvolvem problemas crônicos de saúde física ou mental

O caráter crônico dos problemas desenvolvidos pelas sobreviventes faz com que os efeitos da violência sobre seus corpos e mentes continuem presentes muito depois de o abuso ter fim. Camila ainda luta contra a depressão e tem evitado sair de casa. Depois de usar quase todas as faltas a que tinha direito na residência por motivos de saúde, ela precisou tirar uma licença de seis meses para se cuidar. “Eu tenho me isolado mais das pessoas. Eu tenho vergonha do que aconteceu”, admite. “Porque eu estou grávida, eu tenho medo de as pessoas perguntarem sobre o pai do bebê.”

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