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Alunas da UFRJ convivem com assédio na Praia Vermelha


Campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro na Praia Vermelha, zona sul

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

As universidades não são seguras para mulheres. É o que mostra a pesquisa Violência contra a mulher no ambiente universitário, que revelou que mais de 67% das universitárias brasileiras já sofreram algum tipo de violência e que mais da metade delas já foi vítima de assédio sexual. No campus da Praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro não é diferente. Ali também, os números gritantes do estudo esbarram na cultura de silêncio que recobre o assédio e expõem a incapacidade da universidade de proteger suas alunas.


A dificuldade começa com a definição de assédio. Maria Souza, recém-formada pela Escola de Comunicação (Eco), se lembra de um professor que, sob o pretexto de fotografar o making of de um trabalho, fez registros em close da bunda dela e das amigas. Apesar do desconforto, nenhuma cogitou fazer uma queixa. Não sabiam se aquilo era assédio ou “falta de noção”.


Coordenadora do Núcleo Especial de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem), Ana Paula Meirelles explica que o assédio é um tipo penal “bem fechado”, ligado às relações de trabalho. Mas, fora do âmbito criminal, o termo caracteriza todo comportamento de cunho sexual não consentido (alheio à vontade da vítima) que gere constrangimento – independentemente da intenção de quem assedia.


“O fato de não enquadrar em uma lei penal não quer dizer que não é um ato ilícito, e não ser crime não quer dizer que não gere uma responsabilização” afirma Ana Paula, acrescentando que a naturalização da violência contra a mulher dificulta que as alunas se reconheçam como vítimas.


O diretor da Eco, Amaury Fernandes, acredita que certos professores têm dificuldade para perceber que atitudes machistas, tidas como normais por sua geração, não são aceitáveis. “Aquilo que é considerado assédio hoje é completamente diferente do que era considerado assédio antigamente”, argumenta o diretor. Para ele, é preciso ter os limites bem claros e agir com cautela para evitar mal-entendidos e constrangimentos.


O assédio também acontece entre os alunos. Maria Luiza Resimini, caloura da Eco, foi assediada por dois colegas antes mesmo do começo das aulas. No grupo de Whatsapp dos calouros, um rapaz afirmou ter se apaixonado por Maria depois de ver seu rosto e declarou que ele, que é DJ, não tocaria na choppada do curso, porque estaria “correndo atrás” dela.


O jovem pedia fotos das calouras nuas e confessou ter o costume de dar bebidas alcóolicas a mulheres para deixá-las mais “fáceis”. Nessas circunstâncias, qualquer ato libidinoso constitui violação sexual mediante fraude, por empregar meio que dificulta a livre manifestação da vontade da vítima. Caso a embriaguez a impedisse de oferecer resistência, seria estupro de vulnerável.


Outro colega, que disse ter uma paixonite por Maria, tentou fazê-la tomar uma bebida alcoólica logo depois de a estudante passar mal durante uma dança na gincana dos calouros, realizada dentro do campus. “Me joguei no chão, não estava conseguindo respirar direito, fiquei muito tonta e muito vermelha. Todo mundo viu que eu estava mal, inclusive ele”, conta Maria. Enquanto ela se recuperava, ele a ofereceu um copo, sem dizer o que havia nele, e insistiu para que ela tomasse.


A moça não pensou em fazer uma denúncia na universidade e tampouco saberia a quem recorrer. Ela não é a única. Em geral, as alunas não sabem como proceder e evitam se queixar, por medo de não serem levadas a sério e de sofrerem retaliações que iriam desde o prejuízo de suas notas até eventuais atos de vingança fora do campus. A Ouvidoria da UFRJ, liderada por Cristina Riche, é o órgão responsável por receber essas denúncias. Nem todos que recorrem a ela, porém, se sentem bem atendidos. “Ela é muito grossa”, criticou uma mulher que havia acabado de relatar a Riche um caso de abuso sexual no Hospital Universitário.


Se as denúncias recebidas envolverem servidores, deverão ser apuradas por uma comissão de sindicância, formada por três servidores apontados pela autoridade competente, como o diretor. Se for identificada uma infração disciplinar ou um ilícito penal, a comissão sugere a abertura de um processo administrativo disciplinar, constituído por três fases: instauração, com publicação do ato que constitui a comissão; inquérito, que inclui a instrução, o depoimento de testemunhas, peritos e do acusado e a formulação de um relatório; e o julgamento. Se a penalidade a ser aplicada exceder a autoridade de quem instaurou o processo, ele será encaminhado à autoridade competente. Todo o trâmite não deve durar mais do que 60 dias, podendo ser prorrogado pelo mesmo prazo.


Quando o acusado for um técnico, o diretor da unidade deverá promover a instauração de um PAD, que pode resultar em arquivamento, repreensão, multa ou suspensão de até 30 dias. As penalidades mais severas – suspensões prolongadas, destituição, demissão ou dispensa – só podem ser aplicadas pelo Reitor. Quando envolver um aluno, as sanções de advertência verbal, repreensão e suspensão até 15 dias serão de competência do diretor. A suspensão prolongada cabe à Congregação, e o desligamento, ao Conselho Universitário. Nesses dois casos, é instaurado um inquérito em que é assegurado ao aluno ampla defesa.


Na prática, porém, os processos têm entraves. Na Eco, uma denúncia levou à instauração, em setembro de 2014, de uma comissão que deu como procedentes as queixas contra o professor L.F. Um ano e oito meses depois, o PAD continua em aberto. Segundo José Roberto, funcionário do setor de protocolo da Escola, o andamento dos processos é uma “questão de boa vontade”.


As alunas também estão vulneráveis a quem vem de fora. Em 2014, a estudante de Serviço Social Laryssa Almada. esperava por um ônibus na rua Lauro Muller, um dos acessos ao campus, quando um homem parado à sua frente começou a fazer movimentos “estranhos” com o braço esquerdo. Sempre que alguém passava, ele colocava uma sacola em frente ao corpo. Como não viu o órgão sexual do homem, Laryssa teve receio de reagir e ser tida como “maluca” ou de sofrer retaliações.


Meses depois, uma reunião no campus detalhou diversos ocorridos similares, incluindo um idêntico ao da aluna. Neste caso, os seguranças da UFRJ foram acionados e levaram o suspeito para o campus antes de chamar a polícia, que acompanhou a vítima à Delegacia, onde foi feito um boletim de ocorrência.


Segundo Wallace Roberto, da Diretoria de Segurança da Praia Vermelha, as vítimas de assédio devem procurar os vigilantes e se dirigirem ao Diseg, preferencialmente, com testemunhas ou provas. Lá, é feita uma ocorrência no livro de notas e formalizado um documento que é enviado à direção e à Prefeitura Universitária, além de se orientar a vítima a ir à Delegacia.


O procedimento, porém, nem sempre gera resultados. Estudante de Serviço Social, M. L. tirava um cochilo no Diretório Central dos Estudantes, quando acordou com um funcionário de uma lanchonete do campus deitado ao seu lado, passando a mão por seu corpo. Ele havia trancado a sala. A jovem, que não conhecia a Ouvidoria, recorreu à Comissão de Orientação e Aconselhamento Acadêmico, à Prefeitura Universitária e ao Diseg. Nada foi feito e, quase diariamente, a moça esbarra com seu abusador.


Os responsáveis por proteger as alunas não apenas falham como podem ser justamente quem as põem em perigo. Fernanda Alves, aluna da Eco, começou a ser perseguida por um vigilante após uma funcionária contar que ele estava “louco” pela jovem. “É horrível, morro de medo de um dia estar saindo de lá à noite, ele me ver, me seguir”, desabafa. Ela também não pensa em denunciar, por medo de que ele se vingue. “Vou continuar estudando lá, no mesmo lugar. Vai que ele é demitido, acontece alguma coisa, me espera na saída... Ele sabe meus horários.”


Diante da falta de eficácia da universidade para combater o assédio, as alunas vêm se organizando para evitarem casos futuros. Na Eco, o assédio vivido pelas calouras motivou uma mobilização para impedir os dois rapazes de frequentarem a choppada. Como o evento é realizado em um local público, expulsões não são cogitadas, mas sentar em cima dos isopores de bebidas e desligar a música até que eles se retirem estão entre as ações pensadas, assim como a criação de cartilhas de conscientização e cartazes de protesto.


Natália Castro, aluna do Instituto de Psicologia, já foi assediada três vezes nos arredores do campus. Mesmo feliz de saber que as alunas estão se mobilizando, sente falta de uma ação unificada. “Geralmente cada uma fica em seu campus, em sua área e não fazem uma iniciativa coletiva. Mas eu como estudante também me sinto muito deslocada, não sei muito o que eu posso fazer”, lamenta.


Ana Paula Meirelles frisa a importância da mobilização dos alunos para que a universidade seja transformada, apesar de não ser uma “solução fácil”. Além disso, lembra que o Ministério Público pode ser acionado caso a universidade não dê o devido prosseguimento a uma denúncia. Segundo ela, a instituição pode ser processada administrativamente por não investigar e punir os agressores. E, a partir de um caso concreto, pode-se analisar a postura da universidade em relação ao problema. “A universidade nega a todo momento que concorda com esse tipo de comportamento, mas, a partir do momento que não processa esse tipo de informação, também está sendo machista, porque está sendo conivente. Quando isso sai da universidade e vai pro judiciário, ganha outro viés”, explica Meirelles.


“É preciso que a universidade comece a refletir sobre políticas internas voltadas para as demandas da mulher” pondera Cristina Riche, que vem organizando fóruns sobre violência na universidade. Mas, ao menos por enquanto, as alunas continuam expostas à violência.


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