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O amanhã que construímos


Museu do Amanhã, Rio de Janeiro

Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Quatro mil toneladas de aço, 22 mil de areia e 55 mil de concreto. Essa foi parte do material usado na construção do Museu do Amanhã, maior símbolo do projeto de revitalização da zona portuária carioca, batizado de Porto Maravilha. As cifras envolvidas nas obras do museu, que ultrapassam os R$210 milhões, contrastam com a situação de abandono em que os moradores da área se encontravam há décadas. Agora, com as mudanças empreendidas, eles são forçados a deixá-la, abrindo espaço para um modelo de progresso que não os inclui.


Em 2000, segundo o censo, mais de 39.700 pessoas residiam na zona portuária, a maior parte em moradias populares, quando não em cortiços ou ocupações de grupos sem-teto. O comércio refletia a vida simples da população local, de baixa renda e com baixos índices de escolaridade: eram lojinhas, oficinas e camelôs. O futuro que se projeta com as obras do Porto Maravilha, porém, é bem diferente.


Segundo a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário do Rio de Janeiro (ADEMI – RJ), o aluguel nos novos empreendimentos da região deve variar entre R$14 mil e R$20 mil após a conclusão das obras. Antes mesmo de seu início, em 2009, as notícias sobre o projeto provocaram uma valorização de 300% no preço do metro quadrado dos imóveis, de acordo com a ADEMI-RJ.


Os investimentos feitos na região têm como principal intuito impulsionar o turismo, combinando atividades relacionadas à cultura, ao lazer e ao consumo à criação de habitações para a população de alta renda. A conclusão é de Mayara Rangel e de Maria Luíza Silva, que, em artigo apresentado apresentado no VII Congresso Brasileiro de Geógrafos, em 2014, mostram como o poder público lança seu olhar à zona portuária, tendo como foco não seus moradores, mas a possibilidade de incorporar essa área da cidade à lógica empresarial.


"Evidentemente tudo que está ocorrendo na região portuária é uma mudança no padrão de uso que só beneficiará os agentes do mercado imobiliário”, argumenta Floriano Godinho, pesquisador da área de Geografia Urbana e pós-doutor pela Universidade de Barcelona.


O estudo de Rangel e Silva mostra que esse modelo urbanístico, fundado na estratégia de atrair investimentos públicos e privados, conduz simultaneamente ao sucesso comercial e ao fracasso social, à medida que a população original é expelida da região, pela impossibilidade de arcar com os custos inflados de moradia.


“Pouco a pouco toda a população que habitou por décadas a região será expulsa e a área será tomada por uso comercial e de alto padrão de serviços e espaços gastronômicos”, lamenta Godinho.


Direitos violados em nome do “progresso”


Em 2012, o Fórum Comunitário do Porto entregou ao Ministério Público Federal um dossiê que destaca a violação de direitos dos moradores da zona portuária, vítimas de remoções forçadas por parte da Secretaria Municipal de Habitação. O órgão picha as iniciais SMH nas casas que serão demolidas para a realização de obras do Porto Maravilha, sem nenhum outro aviso prévio.


As famílias vítimas de remoções têm o direito de receber um aluguel social de R$400,00 para se realocarem. Porém, nem todos recebem a quantia prometida e, mesmo para os que recebem, ela é insuficiente para a sobrevivência no Rio de Janeiro das Olimpíadas. Infringindo a lei municipal que garante a todos os removidos realocação próxima a seu local de origem, o reassentamento dos moradores se dá na Zona Oeste, em casas financiadas pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida.


“Veja, há bilhões sendo gastos no tal projeto olímpico e no Porto Maravilha e nada para a reurbanização das favelas; para melhoria da infraestrutura dos bairros periféricos; para a instalação de sistema de transporte integrado e mais eficiente; para de equipamentos de saúde mais eficiente”, critica o pesquisador.


O pesquisador explica que muitas administrações já tentaram pôr em prática projetos de renovação urbana na zona portuária, mas que esbarravam na falta de integração entre os governos federal, estadual e municipal. Por isso, a região foi mantida como reserva de valor pelo Estado, que esperava um momento de valorização daqueles bairros. O estudo de Rangel e Silva mostra que esse momento se deu em 2009, quando se constituiu uma “aliança inédita” entre as três esferas de governo.


“Começa aí a perversidade do modelo capitalista de produção, que subordina a reurbanização de uma área funcionalmente sem uso e que poderia ter sido utilizada para, por exemplo, produção habitacional com fins sociais. Vários projetos populares apontavam para esse uso”, avalia Godinho.


“Essa revitalização não tem que ver com as necessidades de uma classe pobre largada ao abandono, mas com as possibilidades de tornar a região rentável, atraente”, afirma Ronilso Pacheco, interlocutor social da Ong Viva Rio.


Apagar o passado para pensar o futuro


O Museu do Amanhã se ergue sobre o Cais do Valongo, por onde chegou o maior contingente de escravos do mundo: foram mais de um milhão de negros, muitos deles enterrados bem ali. Segundo Pacheco, o comércio de corpos de negros e negras foi transferido para lá para que a região central da cidade não fosse “tumultuada por aquela gente, atrapalhando a estética da cidade que tinha pretensões de ser comparada urbanisticamente a Paris”.


Pacheco sublinha que repensar a cidade não é uma ação despretensiosa e que precisa incluir a valorização da memória. Mas, para ele, a escolha feita pela prefeitura e pela direção do Museu foi de conscientemente apagá-la. “O Museu é uma construção importante, até necessária, mas é nítido que ele ignora tudo que ocorreu naquele lugar”, argumenta. “É como quem manda uma mensagem e diz: ‘o agora é que importa, no passado foram apenas negros escravizados, já passou, não vamos nos prender a isso’. É um passado negro deliberadamente ignorado”, completa.


A poucos metros do Museu, fica o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), uma das poucas instituições dedicadas à preservação da memória histórica africana na Região do Porto. Segundo pesquisas arqueológicas, existia no local um cemitério para milhares de africanos que morreram na chegada ao Rio ou antes de serem vendidos. Apesar de ter recebido financiamento simbólico da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CDURP), o Instituto opera com recursos básicos e conta com o trabalho voluntário de professores, arqueólogos e pesquisadores. Para Pacheco, o IPN é como uma migalha.


“O Brasil já lida muito mal com a questão da memória. Nós não sabemos respeitar a memória, e fazer memória a um povo invisibilizado como o povo negro, menos ainda”, afirma. Para ele, o assassinato de cinco jovens em Costa Barros no último ano, fuzilados com 111 tiros dados por policiais é um exemplo dessa despreocupação. “Uma comoção nacional, tamanho absurdo e barbaridade, mas e daí? Já foi esquecido”, pondera.


"O amanhã não é uma data do calendário ou um lugar, é uma construção coletiva da nossa civilização”. A reflexão sobre esse ponto é o fundamento conceitual do Museu do Amanhã, segundo afirmou seu curador, o físico Luiz Alberto Oliveira, à Folha de São Paulo. Diante do apagamento do passado da zona portuária e das mudanças segregacionistas ali impostas, Godinho lamenta: “Estão construindo um amanhã muito triste para a cidade do Rio de Janeiro.”


Em sua visão, quando as Olimpíadas terminarem e os brasileiros descobrirem que “não haverá legados que possam ser apropriados pela população em geral, a desgraça já estará feita”, comenta. Ele acrescenta que as coisas poderiam ser diferentes caso os governos se organizassem a partir de formas de gestão mais participativas e solidárias.


Já Pacheco termina sua fala com um apelo. “Desejo que a gente não desista, apesar de tudo, de lutar para que a nossa história não seja esquecida, para que não se crie um presente sem lastro, uma atualidade sem ancestralidade”, afirma. “Acho que os alemães fazem bem isso com o Holocausto. Nós podemos fazer também.”


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